colomb_2.jpg (28440 bytes)
A Cidade Retrato
João Paulo Cotrim

É esta a carne das coincidências. Se não acontecem exactamente assim, serão cruzamentos de ocasiões, cuja função nos mapas dos nossos dias é distrairem-nos do importante, fazerem-nos seguir por caminhos sem saída. As verdadeiras coincidências significativas, isto é, as que nos levam a algum lugar, têm de acontecer como a ilustração que se vai tornar, garanto, emblema de Fullerton. Há meses que vínhamos preparando esta exposição, com o empenho das coisas importantes, mas com a exacta lentidão que elas precisam para amadurecer ignorando todos os planeamentos. Só muito no fim, num engarrafamento de encomendas, o Jorge resolveu pensar numa ilustração que servisse para o convite. Acabou por fazer uma das suas melhores ilustrações, aquela que é verdadeiramente um convite a entrar, mais do que na simples exposição, numa obra.

É noite, e é por isso que brilha um céu azul pesado que empurra uma fileira de prédios absolutamente norte-americanos. O primeiro deles, uma massa escura pontuada pelo suave reflexo das janelas, serve de palco à «altiva solidão» de uma caixa de água e de um homem. Que faz ele ali? Desenha, isto é, recolhe imagens? Ou lê alto poemas, isto é, atira palavras? Entre prédios corre um rio calmamente riscado por um barco. Em resposta um avião parece imóvel como um selo numa carta. O claro deste momento chiaroscuro está noutro meio de transporte, um táxi absolutamente norte-americano de tão amarelo, e nas janelas que, sem cortinas, nos oferecem as linhas de um loft despido, e, enfim, nas nódoas humildes de dois candeeiros de rua. No recorte melancólico da paisagem reina a figura humana onde se cruzam todas as perguntas. Outra vez: que faz ele ali? Passa-se alguma coisa? É dele o apartamento? O táxi espera-o? Perdeu o avião? Resolveu ficar? Vigia o outro madrugador? É apenas o porteiro de braços cruzados com insónias? Quantas histórias se condensam aqui nesta natureza viva?

Este lugar e não outro

Esta ilustração expressamente feita para um postal contém os ingredientes com os quais Jorge Colombo (Lisboa, 1963) está a construir uma obra artística, algures entre o registo diarístico, a literatura de viagens e o pictórico retrato urbano, com respectiva fauna e flora. Para tanto usa sempiternos conflitos entre noite e dia, luz e sombra, interior e exteriores, corpo e paisagem, detalhe e conjunto, fidelidade e reinvenção, ficção e realidade.

Apliquemos ao caso em concreto. A luz é a grande matéria de trabalho para Jorge Colombo e onde reside o mistério das suas imagens. Aqui somos tocados não apenas pelo modo como o dia nos é anunciado, mas pelo modo como as propriedades dos sólidos se alteram com a luz, como as coisas ganham personalidade: o prédio principal é quase negro, mas mantém na sombra cada nuance de vidro, enquanto todos os outros se distinguem com subtilezas, num espectro que vai da cor de tijolo à esquerda, ao castanho mais escuro à direita. Este pequeno postal ilustrado, que costuma ser sinónimo de lugar comum, oferece-nos um particular horizonte, que nos deixa aceder a um íntimo interior. Mais: o táxi e os prédios deste lado da margem fazem as vezes de lar: o meu bairro é o mundo. Detectei até agora dois corpos na cena, mas são eles que parecem justificar tudo, são eles os pilares da cidade, são eles que justificam a geologia, que a vivificam. São pontos, mas que fazem do nada só o resto. Ora as figurações, paisagísticas ou não, deste autor revelam sempre um pormenor perturbador. A riqueza do detalhe e o rigor do contorno ajudam os nossos olhos a encontrar uma paz fotográfica, mas trata-se de uma fidelidade fingida. Percebe-se melhor nos corpos e nos rostos: estão tão longe da caricatura como estão do retrato. A caneta do Jorge Colombo interpreta, não reproduz. E é por esta porta que entra o mistério. Na aparência estamos a ver uma cena tipicamente urbana, mas afinal acedemos ao sentimento do seu autor. Tudo o que ele quer mostrar com clareza esconde, afinal, alguma coisa. Pode ser um segredo ou uma banalidade, mas é seguramente o espírito do lugar reconhecível, a poesia concreta do objecto, a sabedoria palpável daquele rosto. É esse o objectivo da literatura de viagens, ou pelo menos dos viajantes, ir de encontro ao espírito, ouvir a poesia e recolher a sabedoria.

Daí a sensação reconciliadora que se desprende das ilustrações que – apesar de ter origem naqueles internos enfrentamentos, ou melhor, naquelas danças melancolicamente pop – é como uma bossa novaiorquina que murmura o bem-estar.

A descoberta da América

«Embora me ache rodeado de ficções gráficas arrebatadoras - os sonhos maus de J.C. Denis, a exactíssima verbosidade de Peter Bagge, a pseudo-ficção romântica de Seth, a dolorosa carne viva de De Crécy e Chomey - criar caracteres imaginários, expor os meus pontos através de acções fictícias ou camufladas, pessoalmente interessa-me pouco. Em muitos casos acho mesmo que o plot, o enredo, é sobrevalorizado. Exemplo clássico são os irmãos Coen: em Barton Fink, ou The Big Lebowsky, a exposição dos personagens, a observação dos ambientes, tudo é perfeito; mas depois estragam tudo com estorinhas artificiais, as pontas soltas todas atadas no fim. Gozava o Robert Mitchum que o Joseph Losey era o género de cineasta que se chateava um bocado com seres humanos na câmara; «mas depois, dessem-lhe uma sala bem mobilada, ou umas escadarias para filmar, e ele estava nas suas sete quintas.» A minha reacção é: que mal tem isso? Tanta poesia tem sido espantosamente escrita sobre escadas, ou aquecedores, ou casacos; porque temos nós que acrescentar enredos construídos e diálogos inventados?

Se para aí eu estivesse suficientemente virado, preferiria trabalhar na onda das fictícias críticas literárias e investigações históricas do Jorge Luís Borges. Ou resumir-me à brevidade eficaz de certas canções pop sem ficção mas com opinião e verve. O que eu não dava para escrever um momento como David Hamilton do Momus; ou o Mes Hommes da Barbara; ou o Sampa do Caetano Veloso. Mas até ver vou trabalhando nos retratos & paisagens.»

Há muito que Colombo, ainda antes da descoberta da América, nos anos 80, trabalhava em retratos & paisagens, embora alguns retratos fossem escritos e outras paisagens fossem gráficas, tendo como traço comum a minúcia e a verbosidade.

A infância arruma-se numa frase para chegar, nos finais de 70, à estreia na escrita. O Jorge e o Vasco (três anos mais novo, e igualmente activo nos campos da ilustração e design), filhos de um casal da classe média de «esquerda discreta, com estímulo intelectual, mas nenhum precedente artístico», moraram Algés e Linda-a-Velha, onde tiveram, de par com a leitura de revistas como Mundo de Aventuras, Falcão, Tintim, Jacto e Visão, a convivência com o vizinho Victor Mesquita.

Depois de uma passagem pouco interessada pelas Belas Artes, onde apenas as aulas de Lagoa Henriques o fascinavam, não se estranha que seja BD o assunto sobre o qual começou a escrever no Tintim, no JL, e no Se7e, tendo mantido neste último uma polémica actividade crítica, não apenas aos trabalhos, mas aos comportamentos e às figuras deste universo. Influenciavam-no a «torrencialidade opinativa» de nomes como Philippe Garnier, francês em Los Angeles, fascinado absolutamente pela paisagem cultural norte-americana, e Fernando Assis Pacheco, repórter de mão-cheia, poeta notável e crítico literário sobejamente visual.

Também cedo começou, por via de um convite de Maria Armanda Passos, a ilustrar a revista Plural; António Mega Ferreira trouxe-o depois para o JL. Entretanto, trabalhou em livros (nomeadamente o Fabulário, de Mário de Carvalho, na &etc; vários livros de Clara Pinto Correia; e textos infantis de Carlos Correia) e inúmeros trabalhos, em geral, associados ao design, o terceiro dos seus rumos. Neste último, a sua assinatura ficaria ligada a uma série de livros e discos feitos nos anos 80 (capas para Brett Easton Ellis, na Teorema, ou discos de Sérgio Godinho e dos Heróis do Mar, por exemplo), mas, antes de mais, à primeira fase de O Independente. E não apenas por ter desenhado um jornal fundamental no nosso panorama, mas por fazer com que a ilustração tivesse nele um lugar único, despertando o trabalho de inúmeros de autores, com novos métodos e critérios que deram à imagem uma dignidade até então esquecida.

Em 1988 conhece, em Lisboa, a artista texana Amy Yoes. Um ano depois visitou-a em Chicago e não mais voltou. «Percorremos juntos mais de metade dos estados da União. Casámo-nos em 1991; até ao fim de 1996 vivemos em Chicago, Illinois; dois anos em São Francisco, Califórnia; em 1998 chegámos a Nova York.»

Tudo o que havia feito até então revelou-se apenas preparatório. Foi dos EUA que enviou crónicas para o Expresso; um conto para a Marie Claire, além de A Cidade Sombra, um retrato de Chicago, para a mesma revista; e lá é o assunto de Tamanho Grande, livro infantil que Inês Pedrosa o fez escrever, ilustrar e publicar na D. Quixote, e que está cheio de cores (o céu lilás, o táxi amarelo) e detalhadas descrições de comidas e… paisagens. Como por lá dirigiu graficamente o jornal New City, de Chicago, e a revista San Francisco, tendo liderado redesigns em ambos. E foi do lado de lá do Atlântico que se deixou fascinar pela paisagem urbana norte-americana, tendo vindo a ilustrar páginas de Pulse!, Chicago, The Village Voice, Mother Jones, The New Yorker, Playboy, San Francisco Examiner, Details. No fundo, esta meia centena de originais que se dão a ver em Fullerton são a avenida principal desse trabalho, esboçada ao vivo, e depois redesenhados com canetas Rotring e aguarelados em papel Arches, com «cores raramente fiéis à realidade».

Uma activa inacção

Na mala foram afinidades, como Hergé ou Joost Swarte, que se cruzaram com outras tantas, para tudo se enovelar em nomes que são linhas e pormenores: os prédios de Tardi, a elegância prolixa de Javier de Juan, as experimentações de Hockney, o atlas de paisagens de Loustal, as memórias aguareladas de Yan Nascimbene, a manipulação inconográfica de Floc’h, o spleen de Pierre Le-Tan, a observação dos comportamentos de Maurice Vellekoop, a genialidade de Gluyas Williams, a limpeza de traço de Abner Dean, a essência americana de Edward Hooper, as alegorias de Guy Peelaert, os ícones de Mário Botas, os cenários de Wenders, o imprevisto olhar de William Eggleston e, pois claro, a torrencialidade informativa e esclarecida de Philipe Garnier, «tradutor» para francês de todos e cada um dos mitos norte-americanos. Terra fértil, capaz de alimentar uma obsessão digna dos repórteres da Ilustração Portuguesa: a cidade, sua fauna e flora e geografia, que é como quem diz, os retratos & paisagens, sobretudo de Chicago, mas seguidas agora pelas de Nova York.

«Quando descobri o Javier de Juan envergonhei-me de tratar Lisboa com tanta indiferença nos meus desenhos. Depois mudei de cidade e prometi nunca mais tratar tão mal cidade que me hospedasse».

O resultado é, portanto, este. São instantes congelados, onde a acção é mínima, não vai além de uma cabeça que se volta ou um corpo que quase corre. A volúpia está na descrição do mobiliário urbano, nos recantos interiores dos aviões, no assinalar das bicicletas e nas linhas dos automóveis. Encontra razão de ver na sobreposição das arquitecturas, nas combinações inusitadas das esquinas, no aconchego das lojas, no seguimento de um muro, na dança das luzes. «Mesmo quando não tenho nas mãos um bloco e uma caneta, fachadas e telhados entram-me pelos olhos, que se perdem no labirinto das escadas de incêndio, na altiva solidão das caixas de água, nas vertigens de tijolo e vidro antigo, ou nas guaritas desconjuntadas dos parques de estacionamento.»

É um registo deambulante, de vagabundo atento e obsessivo, que se torna mais explicitamente diarístico nos interiores das casas, onde ressaltam os enquadramentos, os jogos das linhas em descrição literária das intimidades, em harmonia, ainda que estejam a contar desarrumações. São de novo cenas congeladas de quotidiano, por vezes à espera dos actores, outras desertas pela sua partida, outras ainda dando simplesmente conta dos vestígios da sua passagem. Afinal, um passo mais na direcção dos retratos-rosto. Só neles se vislumbram momentos outros que não de melancolia deleitada na observação. Só pelo rosto dos amigos e transeuntes se chega a outros sentimentos e opiniões. É que a cidade de Jorge Colombo é uma superfície tranquila, haikus que só pelo esforço de leitura revelam as turbulências que alimentam qualquer urbe. «Tudo me chega com memórias agarradas, com mossas do passado: as venerandas cidades americanas têm ruas coçadas, e nenhum pormenor condiz. Há sempre um curto-circuito visual a crepitar, uma incongruência provocante entre intenções e resultados».

O novo projecto é uma evolução de caçador, que busca o imediato e assume de vez o cidadão enquanto rosto da cidade. Trata-se de The Dailies. «Todos os dias assinalo nas ruas de Nova York uma personagem interessante, tomo notas apuradas da postura e da indumentária, e faço em casa um desenho rápido. Página a página, começo a formar um retrato colectivo do nova-iorquino médio com bastante interesse.»

Curiosamente, retoma de algum modo uma característica do trabalho de Colombo antes da descoberta da América: a figura humana em elegante e fino contorno, em harmonias tensas que desembocavam em belas mãos. Com dedos como prédios.

Voltar